Uma paranaense que não tem sobrenome. É possível?
Acontece que, quando passou a existir para o mundo, Edalina de Lourdes ficou
com a identidade pela metade. Mas isso não tem lhe causado problemas
Reportagem Dayane Farinacio
Edalina de Lourdes e ponto final. A influência
francesa do nome está lá, e a homenagem à Nossa Senhora também, mas o
sobrenome, não. A aposentada de 65 anos, mãe de três filhos, que hoje mora na
Cidade Industrial, região da periferia de Curitiba, é um desses casos de erro
de registro de nascimento comuns antigamente, especialmente em cidades do interior.
A mulher sem sobrenome vive como qualquer outra pessoa e convive com mesmos
vizinhos que a conhecem como Lourdes, há mais de 30 anos. Depois de passar a
vida toda trabalhando, agora ela aproveita a aposentadoria para dançar e viajar
com as amigas do clube da terceira idade em que participa, sem problemas ou
preocupações pela falta de sobrenome.
A história, contada pela “vítima” da omissão do nome
de família, começou quando seu pai, Salvador dos Santos Cordeiro, que morava
com a mulher e seis filhos em São Jerônimo da Serra, norte do Paraná, conseguiu
um emprego no Departamento de Estradas e Rodagens (DER – PR) e foi obrigado a
fazer a certidão de nascimento dos filhos, que não tinham nenhum documento. Na
ocasião, registrou todos juntos, para dar menos trabalho. Na vez da filha
caçula, Edalina, que já tinha um ano de idade, Cordeiro – que assim como a
filha mais nova, tinha problemas com a grafia do nome – se esqueceu de citar o sobrenome da menina,
e o escrivão, por sua vez, não perguntou. No registro, ficou então, apenas, Edalina
de Lourdes.
“A gente do mato não entendia dessas coisas, e meu pai
registrou todo mundo junto, o que deve ter confundido a cabeça dele. O
escrivão, que era estudado, deveria ter avisado sobre a falta do sobrenome,
como teriam feito hoje”, supõe Lourdes.
Lourdes e seu RG com sobrenome (Foto: Dayane Farinacio) |
O
vai e vem da vida
Em 1969, Lourdes se casou. A ideologia hippie do amor livre estava no auge, mas casar com Sebastião, primo de primeiro grau, foi só um imperativo da vida – e deu a ela um sobrenome: Rolim.
Na prática, porém, a inclusão não teve muito impacto,
já que numa cidade pequena e rural como São Jerônimo da Serra todos se conhecem
e as compras ainda são feitas na base da confiança. “Na época, a gente não
ligava muito para essas coisas. Hoje, todo mundo me pergunta por que eu não tenho
sobrenome, mas nunca tive problema com isso. Quando preciso comprar alguma
coisa, por exemplo, é só explicar a situação que as pessoas entendem e compro
normalmente”, explica Lourdes.
Sebastião Rolim foi embora anos depois e Edalina voltou
a ser só “de Lourdes”. Ela não quis de jeito nenhum manter o nome do ex-marido,
nem conseguiu colocar o nome do pai, depois de tanto tempo e de toda a
burocracia. “Eu, que já estava em Curitiba nessa época, voltei pra São Jerônimo
da Serra para ver se dava pra colocar o nome do meu pai, mas me disseram que
não tinha jeito, a não ser que mandasse todos os papéis para Brasília, aí
desisti”. Para quem tinha passado a vida toda sem sobrenome, não fazia muita
diferença a presença de um a essa altura da vida.
O caso de Lourdes, de tão incomum, sequer é
contemplado pela Justiça. Como regra geral, hoje é perfeitamente possível
incluir um sobrenome, desde que seja contratado um advogado que peça a correção
do registro civil, com inclusão de pelo menos um sobrenome. Com essa etapa
cumprida, Lourdes precisaria mudar todos os documentos para deixa-los com o “novo”
nome.
O ex-marido de Lourdes, por sorte, deixou em casa a certidão de casamento, único documento que permitiu que os filhos do casal, Otávio e Sonia, fossem registrados pela mãe com sobrenome completo.
“Não fosse
isso, além de ficarem sem pai, iam ficar sem sobrenome também”. Com o filho
mais novo, Fernando, de outro relacionamento, Lourdes teve menos trabalho. O
pai assumiu e deu um nome completo ao menino.
(Des)preocupações
Mesmo trabalhando em dois empregos para dar conta da
casa, dos três filhos e da mãe, que morava com ela, e com todo o preconceito que
enfrentou por ser desquitada – nos anos 70, quando Lourdes se separou
oficialmente, essa situação era tabu - ela não esqueceu a beleza da vida – e
nem a beleza se esqueceu dela. Os cabelos pretos e ondulados, além da pele
morena que Lourdes herdou dos antepassados indígenas, mais tarde encantariam
Ubaldo Topa, seu “namorido” há 20 anos.
Lourdes nunca mais se casou perante a justiça, e nem
quis. Nunca mais pegou sobrenome de marido ou companheiro nenhum (“Deus me
livre!”), e nem mexeu mais nisso. Hoje, é a mulher sem sobrenome graças à
justiça, mas não se importa e nem tem medo. Lourdes acredita que se um dia os filhos
tiverem dificuldade de comprovar a maternidade - já que no documento de Sonia,
Otávio e Fernando o nome de Lourdes ainda é o de casada – vai dar tudo certo,
já que terão todos os documentos. “Quando eu tiver que passar minha herança,
vai ter a certidão de casamento para eles [os filhos] comprovarem tudo”.
Lourdes vai para a ginástica da terceira idade e para
os bailes nas casas de show com as amigas toda semana e apresenta na bilheteria
o registro civil de quando era casada. Ninguém desconfia de nada.
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