Depois de fugir
do comunismo da Rússia e não ser aceito na Alemanha, país de seus antepassados,
Abram Dück chegou ao Brasil para começar a vida do zero
Reportagem Mariana Della Enns
“Sem nacionalidade”.
Esta é a frase que constava nos documentos que Abram Dück recebeu, ao chegar
como imigrante no Brasil, em 1930. Hoje, aos 90 anos, o russo de nascimento,
que foi criado em uma colônia alemã, e sempre cultivou a cultura germânica, se
considera um imigrante alemão, já que nem da língua russa se lembra mais: “Eles
nos chamavam de russo-alemães”, explica.
Localizada no sul da Rússia, a colônia alemã em que Dück nasceu, em agosto de 1897, durou pouco mais de 200 anos. Surgiu na segunda metade do século XVIII, quando, a convite da czarina Catarina, cerca de 15 mil alemães migraram para o território russo, a fim de cultivar terras e produzir trigo, logo enriqueceram.
Com apenas um ano e
meio, Dück perdeu a mãe, Lena Vogt, com uma gripe muito forte. Seu pai Abram J.
Dück casou-se novamente. A vida ia bem na Rússia, exportavam muito trigo e
tinham uma comunidade estruturada em torno dos costumes alemães e da religião
menonita. No entanto, as coisas se complicaram com o início do regime comunista,
quando iniciou-se a fuga de muitos imigrantes e a morte de tantos outros.
A memória de Dück estava ativa ao lembrar que as mudanças vieram com o primeiro plano quinquenal de Stalin, o ditador russo, publicado em 1928, quando teve início a perseguição aos proprietários de terra e agricultores com empregados. “Ter empregados era uma ofensa ao estado comunista” explica o imigrante. A primeira medida tomada era a cassação do direito de voto desses agricultores, seguida da prisão e de sua deportação para fazer trabalho forçado nas regiões mais frias e isoladas da Sibéria.
A alternativa
encontrada era fugir imediatamente da Rússia. Mas para colocar o plano em
prática era preciso uma autorização oficial, “Meu tio Jacob foi para Moscou
conseguir as autorizações para todos nós, e conseguiu, mas não voltou para
casa. Quarenta anos depois fomos descobrir que ele foi fuzilado por ter dois
empregados. Minha tia passou todo esse tempo sem saber se era viúva ou não”,
relata.
Com a autorização em
mãos e prontos para retornar às terras alemãs, descobriram que o país estava
com os portões fechados para eles. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a
Alemanha estava arrasada financeiramente e não queria recebê-los. Ou migravam
para o Brasil, ou para o Paraguai “Não sabíamos nada sobre nenhum dos países.
Diziam que o Paraguai tinha um solo tão ruim, que nem macacos queriam morar lá,
então resolvemos ir pra o Brasil”, conta o russo-alemão, com a naturalidade de
quem explica que escolheu meias brancas para usar hoje porque combinavam com a
calça.
No
Brasil, sem lenço nem documento
A fuga foi assim,
literalmente, sem lenço nem documento. Não era permitido levar dinheiro, então
compraram o máximo de roupa possível para mais tarde trocar por comida. Depois
de diversas interrupções militares e paradas, aparentemente sem motivo,
chegaram ao Rio de Janeiro em 1930, depois de 21 dias de viagem a bordo do
navio Werra. Foi em pleno calor de fevereiro, mês de carnaval, que desembarcaram.
“A gente não entendia esse negócio de carnaval, muita gente fazendo festa na
rua e ninguém sabia explicar o porquê”.
O choque cultural foi
grande. Partiram de um rigoroso inverno na Sibéria para chegar a um verão
carioca. Nem ao menos falavam português. Pela primeira vez provaram feijão
preto e viram uma pessoa negra “As meninas se assustaram porque acharam que a
cor da pele era culpa do sol”, rememora Abram Dück.
A adaptação, como era
de se esperar, foi complicada. Religiosos menonitas da Holanda compraram terras
para os imigrantes em Santa Catarina e ajudaram as famílias a se manter durante
o primeiro ano. A partir daí cada um deveria caminhar com as próprias pernas.
Para quem estava acostumado com grandes máquinas agrícolas na Rússia, abrir
clareiras no meio do mato com enxadas para poder plantar não era tarefa fácil,
mas o trabalho árduo não tardou a trazer sua recompensa: em sete anos os
russos-alemães já eram grandes exportadores de mandioca.
Mais tarde, ao mudar
para Curitiba, a família de Abram Dück investiu na produção de leite e a vida passou
a ser estável.
Ao surgir a
oportunidade para Dück estudar nos Estados Unidos, a questão de não conhecer a
língua inglesa foi só um detalhe, ele conta que o real problema foi conseguir o
visto americano, difícil de sair porque o único documento que ele portava era
brasileiro e dizia em letras grandes: “O portador desse passaporte não tem
nacionalidade brasileira”.
Depois dos entraves resolvidos,
Dück voltou dos Estados Unidos com um diploma de Bacharel em Artes e um
mestrado na mesma área. “Fiz os dois cursos sem reprovar em nenhuma matéria”, lembra
mais de uma vez. Além dos diplomas, trouxe para casa a esposa norte americana,
Doris Harder, com quem permanece junto até hoje, 54 anos depois.
De volta no Brasil Dück
trabalhou como professor de alemão e religião no Colégio Erasto Gaertner, escola
fundada pelo grupo de imigrantes russos-alemães do qual faz parte. “Infelizmente
meus diplomas não foram reconhecidos no Brasil, então não pude trabalhar na
minha área”, lamenta. Dück tem três
filhos — Arthur, Paul e Hugo — e seis netos. “Meus filhos são muito
inteligentes, todos grandes homens. O Arthur até passou o pai, fez um
doutorado”.
Autobiografia
de Abram Dück (Foto: Mariana Della Enns)
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Hoje Abram Dück tem um
documento de cidadão naturalizado brasileiro, mas o coração bate pela pátria
que nunca morou, “Eu sou alemão, sempre fui” confidencia.
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